Sistemas Agroflorestais: o futuro da produção de alimentos
Ilustração da capa: siama.eco.br/cartilha-de-agrofloresta-do-rio-de-janeiro/
Por muito tempo, vimos filmes de ficção científica abordarem as diferentes formas de tecnologia do futuro, automóveis voadores, robôs, inteligencias artificiais, hologramas, teletransporte, etc. Essas tecnologias traziam a ideia de um mundo novo, onde o homo sapiens era super tecnológico e autossuficiente, capaz de dobrar a natureza ao seu favor e com isso dominar os diferentes espaços.
Se analisarmos os Sci-fi mais atuais, veremos que muitos deles trazem em seus roteiros uma perspectiva de futuro diferente daquela dos filmes dos anos 80, 90, 2000, na qual, o ser humano tenta sobreviver em meio às péssimas condições climáticas geradas pelo seu modo de vida. Podemos observar isso em Interestelar, Perdido em marte, Passageiros, Elysium, entre outros. Nesses filmes temos em comum uma preocupação: como produzir alimento frente as mudanças climáticas do planeta, a falta de áreas férteis e ausência de ecossistemas saudáveis o suficiente para sustentar a humanidade?
Os filmes atuais de ficção científica, em geral, trazem a perspectiva apocalíptica do nosso mundo, pós-destruição da natureza. Talvez por que seja mais fácil e rentável construir um cenário apocalíptico em um filme do que falarmos sobre mudanças reais no nosso modo de produzir e de viver no capitalismo. Bom, isso é assunto para um outro texto (rs). Mas, não precisamos ir muito longe na nossa imaginação para pensarmos em tecnologias e meios de produções capazes de salvar o nosso planeta.
Uma das principais atividades realizadas pelo ser humano que causa bastante impacto nos ecossistemas é a produção de alimento em modelos de monoculturas e a pecuária. Em ambas temos a conversão de áreas de mata nativa em áreas de produção, através do desmatamento e queimadas. Áreas que antes abrigavam uma diversidade biológica, são modificadas para plantar coisas como soja, milho, algodão, etc., ou para criar gado. Tais atividades são extremamente danosas para os ecossistemas e sua biodiversidade, por ocasionarem, principalmente, perda de habitat, extinção de espécies, degradação do solo, emissão de CO₂ e contaminação de cursos d’água.
Já ficou claro para diversos cientistas que a atividade agropecuária feita nos modelos de produção atual, causando os impactos que causa na natureza, precisa mudar. Sendo assim, não deveríamos estar buscando mudanças na forma de produzir alimentos e aplicá-las cada vez mais? Não deveríamos enaltecer tecnologias e modos de produção que além de gerarem menos impacto também ajudem a reverter os danos causado no meio ambiente?
Felizmente, não precisamos procurar muito, pois já existe um meio de produzir que engloba essas necessidades, sendo conhecidos como Sistemas Agroflorestais, ou SAF. Os SAF veem sendo estudados por diversos pesquisadores, cientistas e produtores rurais e têm demonstrados bons resultados, não só para o meio ambiente como para a sociedade, especialmente para os pequenos e médio produtores, principais fornecedores de alimentos no nosso país, diferente dos grandes produtores que visam à exportação no mercado internacional.
O mais curioso é que os SAF não são uma solução do futuro, mas do passado, um modo de cultivo realizado por diferentes povos nativos a milhares de anos, incluindo os que viviam e vivem no nosso país. Povos que tinham como base da sua cultura, o respeito a natureza e a mãe terra.
No texto dessa semana trago a primeira parte de uma série de que farei sobre Sistemas Agroflorestais, explicando de forma biológica o seu funcionamento, mostrando a sua importância socioambiental, além da sua possibilidade como ferramenta pedagógica em termos de educação ambiental.
Considero esse e os próximos textos dessa série base para o entendimento de outros que já postei por aqui, portanto, ele pode acabar ficando um pouco extenso e conteudista, mas será necessário já que temos bastantes informações sobre o tema.
A harmonia ecológica
Um dos principais benefícios referentes aos sistemas agroflorestais está no complexo mecanismo ecológico do seu funcionamento. Os ecossistemas só existem graças a uma grande teia de interações entre fatores bióticos (seres vivos) e abióticos (não vivos). Coisa que a gente geralmente aprende nas aulas de Bio do ensino médio. Toda máquina para rodar, precisa que cada parte do sistema funcione perfeitamente, e em sincronia. Da mesma forma acontece na natureza. As interações biológicas dos seres vivos nos seus diferentes habitats geram respostas no meio físico e consequentemente sobre a vida dos próprios seres vivos.
Uma floresta como a Mata Atlântica ou a Amazônia tem um complexo sistema de funcionamento, onde as espécies estão realizando várias trocas com o meio e essas trocas geram algum tipo de consequência em cadeia.
Por exemplo, quando uma árvore de grande porte está no auge do seu tamanho, com um dossel capaz de sombrear uma grande área ao seu redor, ela inibe o desenvolvimento de outras plantas menores que exigem muita luz para crescer, pegando a luz para si. Assim, a árvore evita que outras espécies possam competir com ela pelos recursos dessa área. Se essa mesma árvore é derrubada, as outras espécies que tentavam seu lugar ao sol conseguem ascender na área antes sombreada pelo dossel, pois, agora terá mais energia luminosa disponível.
Ou, quando uma espécie cresce descontroladamente sem nenhum predador ou fator limitante, caso das espécies exóticas invasoras, levando a uma série de redução de recurso para as espécies nativas, podendo causar a extinção delas. Também pode ocorrer de os produtos dessas interações resultarem em ganhos para outras espécies, possibilitando a existência das mesmas. Um exemplo, quando baleias defecam e fertilizam os oceanos.
Os sistemas ecológicos são orquestrados por essas interações e só funcionam bem se elas estiverem em sintonia, algo que não ocorre se você tira várias espécies de plantas de uma região e depois queima a terra.
Quando uma monocultura ou atividade pecuária se instala, necessita de grandes espaços de terra, e obviamente essa terra já está ocupada por mata nativa, aquela que estava lá desde sempre, durante muitos anos. Então o que acontece é a retirada dessa mata nativa, processo conhecido como desmatamento.
Como se não bastasse a retirada de vegetação, esse tipo de processo acompanha outra prática danosa, a queimada. Que pode ocorrer intencionalmente para “ajustar” o solo, matando outras plantas consideradas inúteis, abrindo espaço para o pasto, ou, descontroladamente, quando o desmatamento pode facilitar a propagação do fogo ao deixar áreas expostas e muitas vezes repletas de espécies invasoras que queimam com facilidade, como é caso do capim-gordura (Melinis minutiflora P.Beauv.) ou a braquiária (Urochloa spp.).
Essa mudança radical na configuração dos ecossistemas interrompe uma parte da emaranhada teia de interações dos mecanismos ecológicos. Portanto, gera uma desordem, e essa desordem ocasiona uma série de consequências negativas.
Por que então, mesmo com tantos estudos e pesquisas, a agricultura e pecuária feitas nesses modelos são as mais realizada no mundo? Porque ela alimenta uma demanda de exportação para o mercado externo, produzindo um mesmo tipo de alimento, como a soja, por exemplo, para vender em sistema de commodity, aquele no qual o preço do produto depende da sua oferta e procura. Quanto maior a procura pela soja, maior será sua produção. Caso a produção caia e cause diminuição na quantidade disponível para vender, o preço também aumentará.
Quando se visa apenas o lucro, várias coisas importantes são ignoradas, como, por exemplo, o complexo sistema ecológico da natureza e as suas necessidades para funcionar. Veja bem, não é que todos os grandes produtores não se importem com a natureza, mas os mesmos acreditam que podem moldá-la a própria vontade, utilizando o lucro obtido para comprar coisas que poderiam ser oferecidas pelos ecossistemas, como o uso de pesticidas, herbicidas, agrotóxicos de forma geral, fertilizantes, etc., aplicados para mitigar as consequências da quebra dos sistemas ecológicos e aumentar a produção e consequentemente atender ao mercado externo.
No começo da história da humanidade, nos primórdios da domesticação das plantas, a agricultura visava a produção de alimentos para suprir a fome das pessoas. Com o decorrer dos anos e o desenvolvimento de um sistema econômico baseado na acumulação de bens, a produção de alimento ao redor do mundo deixou de ter como objetivo atender as necessidades do ser humano e passou a servir o interesse do capital. Consequentemente, a saúde do planeta foi sacrificada nesse interesse.
Um dos argumentos de quem critica os Sistemas agroflorestais é que os mesmos não geram lucro suficiente se comparado com as grandes lavouras de monoculturas. De fato, os dois tipos de produção têm bastante disparidade com relação a lucros, mas, o ponto é: qual deles obteremos saúde ambiental, qualidade de vida e emancipação de pessoas? Se você leu o texto até aqui com cuidado e atenção, sabe a resposta.
SAF, o caminho para a harmonia ecológica
O funcionamento de um Sistema Agroecológico tem como base o respeito ao equilíbrio da natureza e dos sistemas ecológicos. Essa é uma premissa ancestral desse tipo de produção. Como falei no tópico acima, os ecossistemas em equilíbrio, conseguem suprir as necessidades dos seres vivos, incluindo o ser humano.
Uma prática bastante utilizada nos SAF é o uso de plantas do grupo das leguminosas (feijão, ervilha, soja, etc.) para enriquecer o solo com nitrogênio (N), importante nutriente para o crescimento de outras plantas. O nitrogênio precisa ser transformado para ser absorvido no corpo das plantas, e as leguminosas possuem associações com bactérias em suas raízes que facilitam essa absorção. Esse nitrogênio será incorporado nos tecidos vegetais das plantas. Ao perderem suas folhas ou mesmo serem podadas pelos produtores, essas plantas geram matéria orgânica rica em nitrogênio para o solo e consequentemente para o cultivo plantado próximo a esse solo. Como exemplo dessas leguminosas podemos citar: Sesbânia sesban (sebania), Mimosa scabrella (bracatinga).
Os cultivos associados com árvores, como as leguminosas ou mesmo outras espécies, pode causar sombreamento nas áreas de plantio e isso também influencia na quantidade de nitrogênio do solo, além de influenciar no crescimento e desenvolvimento de plantas herbáceas, por exemplo. E quando falamos de plantas herbáceas estamos incluindo as chamadas ervas daninhas e plantas invasoras, que competem com as plantas do cultivo e diminuem a qualidade da produção. Outra forma de lidar com essas plantas dentro dos SAF é a técnica de manejo por abafamento, jogando em cima delas matéria orgânica como folhas secas e de polda, além de galho e outras partes vegetais.
Em monoculturas, a deficiência de nitrogênio no solo em geral é suprida com fertilizantes químicos, fabricados em grandes indústrias. Além de não serem acessível devido aos valores, esses produtos podem causar lixiviação dos solos com contaminação de cursos d’águas. Já com relação à retirada de plantas indesejadas, as ervas daninhas, utilizam-se herbicidas, que também são substâncias químicas que afetam o solo, a água, polinizadores e outros seres vivos, contaminando as cadeias tróficas.
Quando uma praga ocorre em uma monocultura, ela se espalha rapidamente, pois, todos os indivíduos daquela área são geneticamente parecidos, são todos da mesma espécie e isso é um prato cheio para organismos patogênicos como fungos e também para insetos herbívoros. Quando isso ocorre temos a aplicação dos terríveis agrotóxicos. Substâncias químicas capazes de causar efeitos de pequeno a longo prazo nos seres humanos, como náuseas, diarreia, vômitos, câncer, cegueira, etc.
Nos SAF, a alternância das posições das espécies faz com que as pragas encontrem dificuldade para se alastrar, já que existe uma diversidade de espécies que não são suas hospedeiras ou lhes servem de alimento. Em um ecossistema saudável os organismos conseguem ter mais resistência a pragas, pois, os mesmo também se encontram saudáveis para combatê-los.
Além de todos esses benefícios, os SAF promovem recuperação de áreas degradadas, cobrindo os buracos que antes eram abertos devido o pasto e causavam as fragmentações de hábitats. Às vezes, o desmatamento deixa esses buracos na configuração espacial das matas nativas, isso isola áreas onde existia um fluxo entre os seres vivos.
Por exemplo, uma espécie X se alimentava de uma planta Y que ficava a 6 km do local onde ela costuma se manter para dormir. E essa espécie só consegue se locomover, em longas distâncias como essa, através das árvores, pulando de uma a outra até chegar ao seu destino. Então, de repente essas árvores são cortadas e onde antes tinha um caminho agora tem um tipo de deserto para a espécie X. Com isso, ela não vai mais naquela planta se alimentar e procura outras fontes de alimentos, só que essas outras formas, depois de um tempo também tem o caminho transformado em deserto. E assim, cada vez mais essa espécie vai se isolando das suas fontes de alimentos e dos outros animais da sua espécie, até o ponto que a sua população se torna extremamente pequena e somado a caça predatória, atropelamentos, maior exposição a doenças, entre outros fatores, ela pode entrar em extinção. A espécie X desse exemplo existe e passa por isso, nós a conhecemos como Mico-leão-dourado.
As árvores presentes nos SAF, além de todos os benefícios ecológicos que trouxe nos parágrafos anteriores, também preenchem esses desertos e podem servir tanto como reestabelecedoras do fluxo de uma população como também podem alimentá-la, o que faz desses animais dispersores dessas árvores, ou seja, podem participar da plantação de novos indivíduos dentro ou nas beiras da floresta. E nessa história, mais uma vez natureza e ser humano ganham.
Bom, até aqui, já podemos ver a grande capacidade dos sistemas agroflorestais de solucionar em partes o grave problema do desmatamento e degradação de diferentes ecossistemas. Por meio dessa técnica de cultivo é realizado um melhor aproveitamento dos diferentes extratos da vegetação, obtendo-se, melhor diversificação da produção, do uso da terra, da mão-de-obra, da renda e do fornecimento de serviços ambientais, como captura de CO₂, melhoramento e preservação dos solos e águas.
No próximo texto, planejo abordar um conteúdo muito importante relacionado aos sistemas agroflorestais: os aspectos socioambientais proporcionados pelos mesmos e a capacidade de transformação social através desse tipo de técnica.
Referencias
Agroecologia: diversidade, movimento e resistência / Murilo Mendonça Oliveira de Souza (Org.). _ Ed. Anápolis: Editora UEG, 2019.
Chacel, F. C. Espécies arbóreas em sistemas agroflorestais no Distrito Federal, Brasil. Dissertação (mestrado) — Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Biológicas, Departamento de Botânica, Programa de Pós-Graduação em Botânica, 2018.
Gorgone-Barbosa, Elizabeth & Pivello, Vania & Rissi, Mariana & Zupo, Talita & Fidelis, Alessandra. (2016). A Importância da Consideração de Espécies Invasoras no Manejo Integrado do Fogo. Biodiversidade Brasileira. 6. 27-40.
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