Em um passado distante, o domínio e percepção do meio ambiente era fundamental para a sobrevivência do Homo sapiens. Os conhecimentos e as relações com os outros seres vivos foram fatores cruciais para o processo evolutivo.
Um passo muito importante na nossa história, foi a utilização de espécies vegetais para diversos fins. Foi a partir dos conhecimentos adquiridos e transmitidos por diversas gerações, que nossos antepassados sabiam o que dava para comer e o que não dava, qual espécie ajudava em ferimentos, qual espécie podia servir de alimento para outros animais, qual causava reações alérgicas, etc.
Não saber se um fruto de uma determinada planta podia ser venenoso ou não, era contar com a sorte em um mundo sem segundas chances. E, saber se uma espécie encontrada na natureza podia aliviar dor ou melhorar alguma doença, era viver com melhor qualidade de vida. Com o surgimento da agricultura as plantas passaram a ter um papel fundamental no aumento das populações humanas.
Passamos a domesticá-las, reproduzindo-as em grandes plantações, aumentamos e modificamos seus frutos que levaram anos sendo moldados pelas pressões evolutivas da natureza, para que suprissem as necessidades nutritivas das pessoas. Assim, a agricultura trouxe maior disponibilidade de alimentos, o que possibilitou mais pessoas se alimentando e sobrevivendo às adversidades do meio, como o frio intenso na época de inverno, por exemplo.
Além da agricultura, outra época muito importante da história da humanidade, diretamente interligada com as plantas, foi o comércio de especiarias, produtos de origem vegetal, tais como o cravo-da-índia, um botão floral da espécie Syzygium aromaticum da família Myrtaceae, a canela, obtida pela casca da espécie Cinnamomum verum da família Lauraceae, ou a pimenta-do-reino, fruto da espécie trepadeira Piper nigrum da família Piperaceae.
Durante muito tempo as diferentes sociedades tiveram como base do seu funcionamento a exploração de recursos vegetais. Impérios e nações foram construídos e guerras foram travadas pela disputa desses recursos. Como não mencionar a guerra do ópio que aprendemos nas aulas de história, uma substância extraída da papoula, nome popular da espécie Papaver somniferum da família Papaveraceae.
Com o decorrer da história da humanidade e o desenvolvimento de diferentes tecnologias, a relação homem-natureza mudou bastante, e as plantas, com todos os seus recursos oferecidos, foram dividindo a importância com outras fontes de recursos que atendiam às necessidades dos novos tempos, como os combustíveis fósseis e metais para a fabricação das tecnologias. Cada vez mais, o conhecimento botânico deixou de ser uma necessidade e foi se tornando algo primitivo.
E quais as consequências disso? Uma sociedade em que as pessoas conhecem muito pouco sobre plantas, consequentemente não sabe da importância dessas para os ecossistemas e para o funcionamento do mundo ao seu redor, pois, as plantas estão presentes no nosso dia a dia em diferentes formas, mesmo que isso não seja tão perceptível.
Então, não é apenas sobre as árvores na amazônia, é também sobre o que você come nas suas refeições, sobre o que você veste, sobre a disponibilidade de água na sua região, sobre o remédio que você usa, sobre a qualidade do ar que você respira, sobre o preço da carne do seu churrasco, enfim, as plantas não são apenas a base dos ecossistemas como são base do funcionamento da vida do Homo sapiens, desde milhares de anos atrás.
O desconhecimento sobre as plantas ao seu redor e no seu dia a dia passou a receber o nome de cegueira botânica. Se não entendemos muito bem alguma coisa, não sabemos sua real importância. No texto abaixo, tento mostrar por que a cegueira botânica é o mal do século e por que precisamos combatê-la.
Os pilares de funcionamento da natureza
O surgimento das plantas terrestre e a ocupação do meio por essas, possibilitou uma maior disponibilidade de O₂ na atmosfera, o que levou ao desenvolvimento de formas de vida dependentes desse gás. Além disso, por serem fotossintetizantes, ou seja, captam a luz solar e a transformam em moléculas orgânicas, as plantas são base da alimentação de diversos seres vivos.
É como aprendemos nas aulas de biologia: as cadeias e teias alimentares possuem vários níveis, onde temos os produtores, consumidores e decompositores. Os produtores são os organismos que sustentam as cadeias e teias alimentares, servindo de alimento para os consumidores primários, que são geralmente os herbívoros. Então, para uma onça-pintada existir ela precisa se alimentar de outros animais, como uma capivara, por exemplo, a capivara, por sua vez, por ser um animal herbívoro, alimenta-se exclusivamente de plantas.
Vamos imaginar que uma determinada área de floresta foi desmatada, queimada e posteriormente ocupada por gado. Toda vegetação foi modificada e agora existem poucas opções para as capivaras daquela região e elas passam a competir com o gado por alimento e território. Com menor quantidade de habitat e disponibilidade de comida, as capivaras se alimentam menos, portanto ficam mais desnutridas e suscetíveis a doenças e predadores, o que leva a morte dos indivíduos e diminuição rápida da sua população.
Com menos capivaras para se alimentar, quem passa a sofrer é a onça-pintada, que precisa correr atrás de outras presas, que também estão diminuindo graças ao desmatamento. A onça é um animal muito emblemático que muita gente conhece e luta pela sua conservação, mas, pouco se sabe que também é preciso conservar e proteger os outros seres vivos da cadeia alimentar, principalmente os produtores, e nesse caso, a vegetação, as plantas, já que sem elas o animal perde habitat e ocorre uma reação em cadeia que leva a diminuição de suas presas.
Uma das maiores dificuldades de conservar animais de topo de cadeia, como a onça-pintada, é que também precisamos conservar o seu habitat, precisamos conservar áreas de vegetação nativa. Quando é feito um trabalho de conservação de alguma espécie de animal, as pessoas até entendem a importância do bicho e da sua preservação, mas não entendem por que não podem desmatar para ter suas plantações e criações de gado, não associam que aquilo afeta a vida dos outros animais, e que afetará a vida delas consequentemente. Graças a cegueira botânica, muitas vezes consideram que é apenas tudo mato e desmatam tranquilamente.
Os serviços que as plantas nos prestam
Os ecossistemas são uma grande máquina em constante funcionamento e nesse processo, como consequência, alguns serviços podem ser prestados à humanidade, os chamados serviços ambientais. Pretendo falar um pouco mais sobre eles em um próximo texto. Comentei um pouco sobre esses serviços no texto de Sistemas Agroflorestais (link). Existem vários tipos, realizados por vários organismos. Nesse tópico tentarei abordar alguns realizados pelas plantas.
No tópico acima, falei que as plantas fornecem bastante O₂ para a atmosfera graças ao processo de fotossíntese. Mas, não podemos esquecer que para funcionar, a fotossíntese precisa de outro gás, o CO₂. Então, além de fornecer O₂, elas retiram CO₂ do meio, melhorando a qualidade do ar e diminuindo os impactos do efeito estufa que tem esse gás como um dos principais protagonistas. Esse seria o primeiro serviço ecossistêmico das plantas, importantíssimo para nossa sobrevivência.
O segundo serviço ecossistêmico está relacionado com o cilo da água pelas suas raízes e a evapotranspiração que auxilia na formação de chuvas. A malha de raízes no solo age como um tipo de bacia, segurando a água e impedindo a sua rápida evasão. Deslizamentos de terra em áreas de construções irregulares, como encostas de morros, ocorre justamente por conta da retirada da vegetação que existia ali. Vemos isso se repetir todo ano durante a época de chuvas fortes. Sem as raízes, o solo não consegue reter água. A longo prazo isso causa assoreamento de corpos d’água e erosão do solo.
Quanto a evapotranspiração, é um processo onde ocorre a liberação de água para a atmosfera em forma de vapor, através dos corpos d’água como rios, lagos e oceanos, e, através das plantas. A água que entra lá pelas raízes, é transportada pelo corpo vegetal e sai por pequenos poros nas folhas e depois fica em estado gasoso e se junta a massa de umidade formando posteriormente as chuvas. Essas chuvas podem alcançar grandes distâncias e abastecer vários corpos d’água, como o caso dos rios voadores da Amazônia.
Falando sobre benefícios para a saúde humana, as plantas sempre foram usadas pelo Homo sapiens para melhorar a qualidade de vida. Até hoje, as chamadas plantas medicinais auxiliam no tratamento de várias enfermidades e são usadas por vários povos originários, quilombolas e por comunidades carentes que possuem poucos acessos ao sistema de saúde. Quando não usadas diretamente, as plantas fornecem os compostos químicos para a fórmula de diversos fármacos.
Existem milhares de compostos químicos, correndo dentro do corpo de várias plantas que a humanidade ainda não conseguiu estudar, e esses compostos podem ajudar a solucionar várias doenças com as quais lutamos há muito tempo, como, por exemplo, câncer, mal de Parkinson, alzheimer, ou doenças mentais como ansiedade e depressão, ambas consideradas pelos médicos como o mal do século. Na verdade, já existe uma planta que mostra grande potencial para lidar com essas doenças mentais, mas ela não só é proibida como é criminalizada. Sim, estou falando da maconha (Cannabis sp.).
Mas, talvez o maior serviço prestado pelas plantas para a humanidade seja o de alimentação. Sem elas, os nossos antepassados ao menos teriam conseguido energia para descer das árvores e adotar uma postura ereta. O milho, por exemplo, sustentou sociedades como a dos Astecas. Já o trigo foi responsável pela ascensão das sociedades mesopotâmicas. E o que falar do Brasil, né!? Um país que assim como os seus vizinhos latino americanos, foi fundado pelo extrativismo vegetal, seja ele do pau-brasil, da cana-de-açucár, café, algodão, milho ou da soja.
A cegueira botânica tem como uma de suas consequências a não visualização de outras plantas que também servem como alimento, mas são tratadas como sendo apenas mato, as chamadas plantas alimentícias não convencionais (PANC). Muitas dessas plantas são bastante ricas em nutrientes e ocorrem em abundância na natureza e são de fácil acesso. Algumas são encontradas em qualquer jardim ou em terrenos baldios. Muitas delas também são nativas e muito bem adaptadas às condições ambientais de uma determinado ecossistema.
É graças a essa falta de importância atribuída às plantas que muito desmatamento ocorre. Afinal, “é só uma árvore”, “é só mato”. A cegueira botânica pode, sim, ser considerada o mal do século, pois, como foi elucidado precisamos das plantas para absolutamente tudo na nossa vida, inclusive para sairmos desse caos ambiental que a humanidade se encontra. Mas como vamos fazer isso se nem ao menos podemos enxergá-las de verdade?
Precisamos ter um olhar diferente para esses seres vivos. Um olhar botânico, que consiga ver, além da beleza, a grande importância desse grupo para a manutenção da vida no planeta. E isso pode ser construído principalmente através da educação ambiental.
Essa parte final do texto direciono para profissionais da área ambiental. Nós também temos responsabilidade nesse processo e precisamos levar para as pessoas a importância e beleza das plantas, fazer elas se apaixonarem por esse grupo assim como se apaixonam pelos animais que dependem delas para sobreviver.
Referências
https://ciprest.blogspot.com/2019/05/cravo-da-india-syzygium-aromaticum.html
http://historiaupf.blogspot.com/2016/03/1857-potencias-ocidentais-atacam-china.html
https://www.gardenia.net/plant/papaver-somniferum-laurens-grape
https://museudouniversodafarmacia.com.br/acervo/moleculas-da-natureza/papaverina/
https://www.salveasflorestas.ufv.br/?page_id=292
https://donozen.com.br/jatoba-como-plantar-essa-arvore-cheia-de-beneficios/
Oliveira Jr, C. J. F. de, Amador, T. S., Cécel, A. T., & Barbedo, C. J. (2022). Porque não comemos nossa saudável biodiversidade?. Brazilian Journal of Agroecology and Sustainability, 4(2). Recuperado de https://www.journals.ufrpe.br/index.php/BJAS/article/view/4961.