A urgência de ensinarmos sobre racismo ambiental
Imagem: https://br.noticias.yahoo.com
Quando eu era pequeno, me pegava observando os lugares onde outras pessoas, com melhores condições financeiras, moravam. Era uma sensação de encantamento com os lares alheios. A grama do vizinho era sempre mais verde, mais confortável, maior e preservada.
Às vezes também observava algum ambiente público de lazer com natureza preservada e achava tão chic. Era como um pequeno paraíso, um ambiente de paz onde eu podia ter um pouco de liberdade e entrar em contato com um ar mais puro, com plantas, animais e o silêncio. Só que esses lugares sempre pareciam ser distantes da minha casa, em outras cidades.
Criado na periferia de Olinda, cresci olhando para o lugar que vivia como um espaço maltratado e injustiçado. Sempre pensava, “nossa, se a praia daqui tivesse mais infraestrutura, seria um espaço tão legal, a gente podia aproveitar tanto e não precisaríamos ir para outras praias mais longe! A prefeitura bem que podia organizar isso”. Olinda, a cidade onde nasci e cresci, infelizmente, não cuidava muito da preservação de suas praias e outros espaços públicos. Por muito anos, diversos esgotos, principalmente os de restaurantes de beira-mar, foram despejados na praia, e com o crescimento acelerado da população a poluição pelo lixo gerado pelas pessoas também aumentou.
Cresci, e mudei-me para São Paulo, a cidade onde eu já não esperava ter acesso à natureza tão facilmente. Porém, mais do que ter dificuldade em achar espaços verdes na cidade, em São Paulo pude perceber outra coisa: a força da desigualdade social refletida no acesso a um meio ambiente preservado.
Sabemos quão saturada é SP, com seus mais de 12 milhões de habitantes que se aglomeram nos saturados espaços urbanos. As áreas mais preservadas encontram-se afastadas tanto do centro como das periferias. Podemos achar alguns parques bem conservados e com bastante espaço na capital. Em São Paulo, um bairro considerado verde, ou seja, aquele que é mais arborizado, possui mais parques, praças, etc., é usado como fator de valoração imobiliária e torna-se mais caro, logo, está diretamente relacionado ao poder econômico. Quem tem mais dinheiro consegue morar e viver nesses locais mais verdes que vendem uma melhor qualidade de vida dentro da megalópole poluída. Então, algo que deveria ser um bem comum torna-se “moeda de troca” no mercado.
Além disso, podemos falar também sobre infraestrutura urbana na cidade de São Paulo, onde periferia e centro tem um abismo enorme com relação a esse tema. O saneamento básico, a gestão de resíduos sólidos e acesso à água potável, são precarizados nas periferias, onde a maioria da população é constituída por pretos e pardos, o que é diferente das regiões em que maior parte da população é constituída por pessoas brancas. Só que isso não é exclusividade da capital paulista, mas uma infeliz realidade da grande maioria das cidades brasileiras.
Eu não sabia como dar nome a todas essas diferenças que fui observando durante minha vida, seja em Olinda ou em São Paulo, e não sabia como e por que isso ocorria. Foi então que após adquirir alguns conhecimentos na minha graduação e após ler alguns posts nas redes sociais eu passei a entender que existe um termo para tal desigualdade: racismo ambiental, ou, injustiça ambiental.
Origem e definição do termo
O termo racismo ambiental nasceu nos Estados Unidos, cunhado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr. A população negra estadunidense era a mais afetada pelos rejeitos das grandes indústrias, pois as regiões onde viviam eram o destino desses rejeitos tóxicos e poluentes, algo que não acontecia em áreas onde a maioria da população era formada por pessoas brancas. Pouco a pouco isso levou a população negra a se manifestar e denunciar como a degradação e poluição as acometiam com frequência e impediam de ter qualidade de vida. Em 1991 tema foi debatido na I Conferência Nacional de Lideranças Ambientais de Pessoas de Cor (First National People of Color Environmental Leadership Summit) onde passou a ter uma definição mais concisa.
Segundo a declaração da Rede Brasileira de Justiça ambiental, racismo ambiental pode ser definido como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.”
Usando as palavras da pesquisadora Dra. Selene Herculano tiradas do seu artigo intitulado Racismo ambiental, o que é isso? De 2014, “a expressão suscita estranheza e há quem ache que teria sua dose de oportunismo e ‘apelação’. Mas olhe a cor da pele de quem mora nas favelas, sobre os morros, nas beira-rios e beira-trilhos; olhe a cor da pele de expressivo número dos corpos levados pelas enchentes, soterrados pelos deslizamentos.”
De forma geral podemos definir o racismo ambiental como produto de injustiças sociais e consequentemente injustiças ambientais que recaem em grupos étnicos vulneráveis. Ou seja, é como se para a população pobre, preta e periférica sobrassem apenas áreas degradadas, e como se as áreas em que vivem importassem menos e estariam mais “receptivas” a receber os impactos e rejeitos de determinadas atividades, ou mesmo, não serem dignas de cuidado e preservação pelas autoridades públicas.
Também ocorre quando populações de povos nativos e comunidades quilombolas, que em muitos processos de exploração e realização de mega obras, como a construção de usinas hidroelétricas, por exemplo, não são consideradas e precisam moldar suas vidas e se adaptar aos impactos causados pela perturbação no ambiente, o que pode levar a vários problemas, como a falta de comida e doenças.
Criou-se uma ideia de que os efeitos das mudanças climáticas afetará todas as pessoas do planeta de forma igual, mas o racismo ambiental acontece para mostrar que não é bem assim, pois as consequências das atividades humana no planeta já causam diversos problemas que afetam de forma diferente as pessoas. Enquanto a população mais rica do planeta emite mais carbono e polui mais do que a população mais pobre, a primeira sofre menos com as consequências climáticas do que a segunda, que é duramente afetada.
Esse termo exige uma reflexão ampla, pois é resultado de diversos outros problemas, como a colonização exploratória, distribuição de renda, moradia, urbanização e posse de terra.
Exemplos reais do racismo ambiental
A pandemia da COVID-19 é o maior exemplo do racismo ambiental no momento. Além de ser uma crise sanitária, a pandemia também pode ser considerada uma crise ambiental que surgiu da interação homem-animal, neste caso a caça e consumo de animais silvestres, que fez o vírus passar do animal para o homem. As maiores consequências da pandemia recaíram nas populações pobres e periféricas, em sua grande maioria pretas e pardas, além das populações de povos nativos, e podemos observar isso ao analisarmos as taxas de mortos pela Covid no mundo por áreas.
E se precisarmos de exemplos mais antigos de racismo ambiental, podemos lembrar dos casos de Brumadinho e Mariana. Desastres ambientais causados por rompimento de barragens, construídas para conter o reservatório dos restos gerados pela atividade mineradora. Infelizmente, sabemos quais populações foram (e são) mais afetadas por esses desastres: comunidades locais, periféricas, povos nativos e quilombolas que tinham seu meio de subsistência por meio de atividades que dependiam dos rios, como a pesca, por exemplo.
A importância do entendimento sobre o racismo ambiental no processo de educação ambiental
Nós, profissionais da área ambiental, especialmente educadores ambientais e professores de ciências e biologia, precisamos sempre ter em mente que não é possível tratar de temas relacionados ao meio ambiente sem considerar os fatores sociais que afetam diretamente a vida das pessoas e consequentemente afetam a natureza. A crise ambiental existente é produto das desigualdades sociais fomentadas pelo sistema econômico em que vivemos.
É preciso que debatamos com nossos alunes e educandes tais temas, pois, mais do que apenas entender sobre o meio ambiente, precisamos fazê-los entender nossa relação com o mesmo.
Na educação básica, muito se fala da questão do lixo e o seu destino, mas pouco se questiona sobre quais pessoas são mais afetadas pelo acúmulo do mesmo. Os materiais didáticos incentivam a separação dos lixos recicláveis, mas não questionam se isso é algo possível para todas as pessoas fazerem. Em alguns bairros periféricos, por exemplo, não existe coleta seletiva, e em alguns casos, nem mesmo a coleta de lixo comum é realizada corretamente, devido à dificuldade de acesso às ruas. Ainda na questão do lixo, pouco se questiona sobre o acelerado consumismo que alimenta o capitalismo e gera mais e mais lixo todos os dias que serão jogados no planeta.
Os impactos ambientais causados por atividades exploratórias como a mineração e a poluição por fábricas e indústrias são tratados de forma generalizada, como se esses impactos afetassem diretamente a todos da mesma forma. Não se debate sobre quais são as populações mais ou menos afetadas por tais impactos. Na verdade, pouco se fala da existência dos grupos minoritários e como vivem, como se relacionam com a natureza e entre si, fazendo parte do processo de apagamento étnico-racial contra esses grupos.
Nos casos de enchentes e deslizamento por conta de chuvas, podemos nos deparar com discursos, da própria sociedade, que culpabiliza as pessoas por morarem em áreas de risco, mas muitas vezes não é questionado o porquê dessas pessoas morarem nessas áreas, ou por que não houve investimento por parte do poder público para prevenir tais desastres.
O tema de racismo ambiental é perfeito para trabalhar multidisciplinaridade nas escolas e pode ser abordado envolvendo várias disciplinas como biologia, história, geografia, etc., porque exige uma compreensão ampla de alguns temas que nem sempre são debatidos nas aulas, como o entendimento do que é racismo e suas diferentes formas, pois, muitas vezes o ambiente escolar está preso a uma educação que apenas despeja os conteúdos nos alunos, visando a aprovação em vestibulares e processos seletivos, ou como diria Paulo Freire, uma educação bancária.
Trazer esse tema cada vez mais para os debates possibilita o pensamento crítico necessário para salvarmos o meio ambiente, pois como eu disse no texto, a crise ambiental na qual nos encontramos é produto das desigualdades sociais geradas pelo capitalismo, então não vamos conseguir converter os danos causados e prevenir que novos aconteçam, sem entender as suas reais origens.
Não é normal que alguns grupos estejam restritos a determinadas áreas. E não pode ser considerado normal que as periferias sejam negligenciadas quanto ao meio ambiente, quanto a infraestrutura e quanto a qualidade de vida. Também não é justo que algumas áreas onde alguns grupos vivem, sejam uma opção para qualquer tipo de descarte, sem que haja preocupação com as vidas ali presentes. E é inconcebível que para ter acesso e estar inserido em áreas que ofereçam um bem-estar ecológico, as pessoas devam pagar para tal.
Para finalizar o texto gostaria de reforçar o artigo 225 da constituição brasileira de 1988 que diz: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Referências
HERCULANO, S. Racismo ambiental, o que é isso? Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2014.
Angeli, T., & Oliveira, R. R. (2016). A utilização do conceito de Racismo Ambiental, a partir da perspectiva do lixo urbano, para apropriação crítica no processo educativo ambiental. Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, 33(2), 51-70.
Pereira, Viviane Camejo, and Claudemira Vieira Gusmão Lopes. "o ecologismo dos pobres e o racismo ambiental: reflexões sobre sociedade e natureza para uma educação ambiental crítica." Divers@! 14.2 (2021): 110-125.
https://polis.org.br/estudos/racismo-ambiental/.